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contos

CIPRIANO LUPO

parte 01




Ibaté, 1937.


Não havia casal mais feliz morando naquela cidade interiorana, já que estavam aguardando seu rebento. Não fizeram briga costumeira de casal sobre qual o sexo da criança, estavam felizes, seriam pais, Pedro e Beatriz.

Na ida, de carroça para a cidade vizinha, onde o hospital, a Santa Casa, tinha mais condições de trazer a criança à luz, nasceu o menino, ali no caminho mesmo. Beatriz era o misto de dor e alegria, soluçava agradecendo à Deus pelo filho, Pedro desmaiara quando viu sangue escorrer pelas pernas da amada, deixando, assim, a missão de direção do veículo para seu sogro Benício, a quem todos chamavam de Seu Buba.

A mulher de Seu Buba, Dona Encarnação foi junto a contragosto, dizia que não precisava ir à hospital algum pois era parteira nata e pariu Beatriz sozinha enquanto Seu Buba estava na lida diária. Mas estavam lá agora, todos na estrada, antes quatro, agora cinco.

A cidade onde se encontrava o hospital era a cidade natal de Pedro, último filho de sete. Com certeza o menino teria muitos tios.
A mãe de Pedro, Dona Balbina, era católica postólica romana praticante, tanto que batizou os sete filhos com nomes de apóstolos, João, Lucas, Paulo,Mateus, Felipe, Tomé e por último, Pedro.

Dona Balbina tratou de batizá-los no dia seguinte ao nascimento, todos. Todos, menos Pedro, já que o marido Inácio vivia arrumando casa e serviço em todo canto, causando inconstância.

Dona Balbina jamais se atreveria a sair sozinha numa cidade desconhecida, com filho pequeno, sem batismo, por respeito ao marido e atribulações com os outros seis filhos. Assim cresceu Pedro, o caçula desgarrado da doutrina religiosa da mãe, porém crente que Deus existia.

Beatriz era filha única, tinha somente pai, mãe e o tio, o Padre Nelson, como parentes, logo não teria primos nem sobrinhos por sua parte da família. Também não era preciso mais sobrinhos, Tomé, seu cunhado, fabricava gentes por onde passava.
Negrão bonito com voz grave e sotaque ritmado, Tomé era vitrina viva para as donzelas da cidade. Donzelas até que Tomé batesse à porta, dizendo estar com sede ou apertado para ir ao banheiro. Realmente urinava, aproveitava que estava no banheiro para botar agua de cheiro nas mãos e no pescoço. Carregava consigo uma escova de prata, presente de seu Mestre Tamoio, lenda da capoeira, conhecido por derrubar três ou mais guardas com um único golpe.
Certo de que estava aperfumado e com o corte de cabelo alinhado partia para o ataque à donzela da vez. Dali três trimestres Beatriz ganhava um sobrinho ou sobrinha. Não errava. Uma moça, uma criança.



Assim que o quinteto chegou à cidade foi recebido por uma matilha de vira-latas, atraídos pelo sangue do parto que pingava pelas frestas da carroça. Os cachorros que não vinham atraídos pelo sangue latiam muito na direção de Pedro, que naquela altura já havia se acostumado com o fato de que qualquer cachorro na face da terra não gostava dele por alguma razão, desde infante.

Haviam feito uma combinação, Pedro e a esposa. Se fosse menino, o pai escolheria o nome, se fosse menina a escolha seria da mãe.
Sendo menino, o recém-nascido, Pedro tratou-o de registrá-lo Cipriano Lupo, era devoto de São Cipriano e gostava da sonoridade dos nomes gregos.

No hospital só tiveram o trabalho de limpar e fazer curativos em Beatriz, da placenta e corte do cordão umbilical Dona Encarnação deu cabo já na carroça. Sentia-se, a parteira antiga, vitoriosa pelo fato de ter tirado a placenta e cortado o cordão do neto Cipriano antes de qualquer doutor que fosse. Pedro, de tanto medo de sangue, desmaiou feio que só acordou mais tarde no leito do hospital ao lado de Beatriz, com o choro do filho Cipriano.

Saindo do quarto onde foi internada Beatriz, para exames e a prescrição de resguardo, ainda nos corredores do hospital, Seu Buba convidou o papai Pedro para que fossem tomar um trago de cachaça na venda, em comemoração ao nascimento de Cipriano. Seu Buba era orgulho puro, afinal ganhou um neto varão, o primogênito de sua filha era homem. Por dentro ficou melindrado, nutria esperanças de que o genro fosse batizar Cipriano como Benício.

Na vendinha encontraram Tomé e Felipe, este último aconselhando, em vão o irmão galã a não produzir mais pessoas no mundo. Felipe dizia a Tomé que se vestisse a capa da tripa de porco ou de cabra, com uma ponta amarrada, no pênis, o risco de ser pai de novo era menor. Tomé alegava desconforto, dizia que já havia tentado, mas arrancou fora a capa no meio do "processo". Também disse que era dificil achar uma tripa cuja capa favorecia a anatomia. Disse também que poderia ser uma missão que lhe foi dada, de povoar a cidade com sangue seu. Quando Tomé disse essa última frase, Felipe engasgou com a tubaína.

Pedro entrou anunciando uma rodada de cachaça aos presentes, pois se tornara pai. Tomé o felicitou e rebateu a reprimenda de Felipe dizendo que filhos traziam alegria, que bastava olhar para o irmão caçula. Desenvolveu uma teoria a fim de justificar o tanto de donzelas e filhos. Felipe deu-se por vencido e não esticou a goma do assunto. Viu que de nada adiantava. Continuou tossindo, a tubaína havia subido para o nariz, tamanha a surpresa com a frase de Tomé.  Seu Buba ria de dar gosto, pensando por dentro que Beatriz teve sorte de encontrar Pedro ao invés de Tomé. Comemoraram o nascimento de Cipriano com longos abraços e brados de viva. Pedro aproveitou para saber da família e amigos que deixara na cidade natal.

Lá pela quarta dose de cachaça, todos viraram filósofos. Seu Buba indagou Pedro, sobre o interesse dele em se batizar nas àguas sagradas do Senhor. Era preciso que o pai fosse batizado para celebrar a purificação dos pecados do pequeno Cipriano. O sogro prontificou-se a falar com o irmão que era padre, para que agilizasse o andamento de sua primeira comunhão e batismo do neto. Pedro fez que não ouviu, ou não ouviu realmente, devido à alteração alcoólica. Brindavam todos os copos enchidos, em homenagem ao bebê. Mateus chegou a trincar um copo por conta da euforia.

Lá pelas sete da noite Mateus apareceu na venda, a bordo da charrete, luxuosamente equipada com uma mula pintada como fosse zebra, atração da petizada. Logo recomendou para que os três irmãos e Seu Buba fossem para a casa dele, era lua cheia, advertiu, e, segundo os costumes da cidade, ninguém passava das oito da noite na rua em dias em que alua se apresentasse de tal modo. Levou o quarteto bêbado para casa, no caminho gritavam e cantavam descompassadamente. A matilha reapareceu, em número reduzido dessa vez, latindo atrás da charrete de Mateus.

O sol que ainda restava daquele dia especial coloria, de longe, as nuvens com cor púrpura num céu cobalto, estrelas que pareciam ter sido polidas, de tão brilhantes. O Cruzeiro do Sul apresentava-se explendoroso, fazendo Pedro acreditar que toda aquela beleza que o firmamento apresentava era um presente para Cipriano, seu filho tão aguardado e querido.




                                                  fim da parte 01




parte 02


Amanheceu o sábado em São Carlos, cidade onde, no dia anterior, nasceu o pequeno Cipriano.
Na casa de Mateus, todos acordaram na rebordosa,continuaram a beber, os irmãos, até perto da meia-noite, quando não aguentaram mais tanta cachaçada e despencaram, um a um, na rede, no banquinho e no chão. Tomé acordou com enjôos que o levaram diretamente ao banheiro, do lado de fora da casa do irmão.
Chegando perto da casinha, avistou um corpo no chão, correu e viu Pedro todo sujo, largado no meio do saibro. Acordou-o e perguntou o que o irmão fazia ali dormindo fora da casa e com imundices na roupa. Pedro disse que não se lembrava de coisa alguma.
Tomé vomitou quase toda sua vida na latrina, enquanto Pedro se enfiou nu debaixo do chuveiro, tomou um banho-de-gato e entraram.

Seu Buba estava coando o café, esperto que era, parou cedo de beber e foi dormir, já não era menino novo que cura ressacas em meia hora. Viu Tomé olhando o bule como fosse um elixir e quase suplicando por uma xícara. O velho o serviu, rindo com tom sarrista. Pedro foi em busca de roupas do irmão que lhe servissem, achou uma gandola velha da cavalaria e calça que com ela fazia par, dentro do baú. Adentrou a cozinha e foi recebido com continência de Seu Buba, que riu até lhe atacar o pigarro.
Conforme foram acordando foram se ajeitando, tomando café, chá de boldo, vomitando, rezando para a dor de cabeça sumir e jurando que nunca mais voltariam a beber. Tomaram o rumo do hospital, foram de charrete, reclamando cada vez que as rodas passavam num buraco ou pedra. Mateus dizia que sua cabeça iria cair, tamanha a dor que sentia.

A charrete sacudiu ao passar em cima de outra coisa. Pedro olhou pela abertura e viu que era um vira-lata morto, com a barrigada exposta. Mal se surpreendeu e viu outro, da mesma maneira que o primeiro. Depois mais dois. Sentiu pena dos cachorros. Seu irmão apenas disse: "Ontem foi dia de lua cheia, de quinta para sexta, inclusive."


Assim que desceram da charrete perceberam uma estranha movimentação perto da Santa Casa.
Dia que começou muito estranho, não bastassem os vários vira-latas dilacerados pela manhã, no caminho. Mas Pedro não sentia-se abalado, afinal estava feliz pelo nascimento do primogênito e nada poderia lhe tirar esse prêmio divino, pensava.

Assim foi pensando, andando pelos corredores do hospital, acompanhado do sogro e irmãos. 
No corredor onde estavam filho e a esposa Beatriz existia um clima funéreo, que se acentuava a cada passo próximo da porta. Sentiu o pior arrepio de sua vida, mas controlou-se, lembrou do dito popular que diz que notícias ruins chegam depressa. Tal controle sumiu quando viu sua esposa e sogra... MORTAS!